top of page

Śavāsana ou a arte de praticar a morte, um pouco todos os dias

Exploração psicológica da postura do cadáver, seguindo a perspectiva de Krishnamacharya


O tema da morte sempre constituiu um mistério e um tabu, em especial na cultura ocidental. Mas no oriente, sobretudo na cultura hindu, o inconformismo com a morte é considerado como uma indicação da eternidade da alma. Segundo os ensinamentos da Bhagavad-gītā, a imortalidade pode ser vista em duas perspectivas: a da transmigração da alma e a da libertação da existência material, ou seja, uma jornada com retorno, e uma jornada sem retorno e em direção ao eterno/absoluto. No plano da auto-realização há o reconhecimento da existência continuada do ser, da consciência ou conhecimento ilimitado. A morte do corpo e a perda dos prazeres dos sentidos temporários pode representar a possibilidade de se manifestar um ganho maior e, por isso, não há motivo para medo e ansiedade. A passagem para outro corpo é algo tão natural, como ir para outro lugar diferente.


Na prática de yoga, Śavāsana, a postura do cadáver, faz alusão a este ciclo de morte e renascimento.

Śavāsana não é apenas um descanso para o corpo é também uma disciplina meditativa. É uma forma de cultivar a qualidade de atenção plena, consciência, calma e imobilidade. Na prática de yoga , śavāsana é considerado um āsana de transição, muito importante, para Prāṇāyāma, preparando o corpo-mente para o Pratyāhāra (abstracção dos sentidos), Dhyāna (contemplação/meditação) e, no final, para o Samādhi (a unidade com o Espírito).


Aparentemente, Śavāsana não requer muita técnica, conceito ou aplicação. Deixamos o corpo imóvel deitado no chão, permitindo que o ar simplesmente entre e saia das narinas de forma natural. Mas, à medida que vamos praticando esta postura vamos tomando conta da profundidade em que ela trabalha. Vamos tomando consciência que o objetivo deste āsana é deixar ir, render-se, entregar-se a uma série de pequenas mortes: dos pré-conceitos, do ego, do medo, da separação. Matar o inútil! Para que o novo tenha lugar. Esta postura nada mais é do que a representação da vida: começa-se com uma energia e termina-se com outra, mais ampla e clara. E assim se aprende a deixar ir, todos os dias um pouco, até que a ideia de morte não seja algo feio, alheio a nós mesmos, e sim algo que faz parte da vida.


Assim como o ar encontra os canais abertos num corpo abandonado em Śavāsana, a mente faz o mesmo, deixando-se levar através do fluxo de sensações e pensamentos. Quando a respiração é livre, a mente é livre! Quando o ar flui solto e naturalmente, a mente descansa nela mesma. Quando a mente relaxa, a língua e palato ficam com mais espaço, o teto da boca eleva-se e alarga, e o centro do corpo abre. A mente e o corpo activos/alerta são a consequência da execução das posturas de yoga durante uma prática, mas em Śavāsana dá-se exactamente o oposto, ou seja, a mente e o corpo existem entre a actividade e a total não-actividade, como se estivessemos a dormir, mas com a mente desperta, totalmente consciente. Dormir e sonhar é mais fácil do que se entregar completamente à postura, pois dormir deixa-nos afastados da experiência profunda e sutil de Śavāsana. Não tem mal nenhum dormir ou sonhar acordado, só que nesses estados estamos sem consciência e a mente mantém o seu estado de existência condicionada.


Quando a respiração acalma e a mente começa a ser embalada pelas nuances dessa respiração e pelas sensações do corpo, conectamo-nos com o centro de nosso corpo, do nosso ser. Usualmente a mente tenta de tudo para não entrar em contacto com as sensações e sentimentos do nosso centro, pois aí existimos em maior profundidade e conexão com o divino que somos. Mas também, é o local mais intenso da nossa existência e, na maioria das vezes. colocamos as memórias e e sentimentos desagradáveis nos cantos sombrios e recônditos do nosso corpo e psique, onde o radar da percepção dificilmente chega. Quando algo vem à superfície da consciência - um pensamento que traz desconforto, uma sensação que perturba, uma memória dolorosa, chamamos imediatamente o nosso repertorio de fuga, como o dormir e sonhar acordado.


Em Śavāsana, não precisamos evitar. Simplesmente observamos com uma atenção constante o que quer que venha a tona, permitimos que isso passe, que morra e voltamos ao presente momento. Śavāsana dá-nos a oportunidade de experienciar uma pequena morte, a cada momento, a cada dia. Dá-nos a abertura e clareza para observarmos os nossos padrões de apego e repulsa, ou seja, os actos discriminativos que se tornam formas de seleccionar o que queremos tolerar e o que recusamos tolerar. Permite-nos perceber que repulsões e desejos ambos são sagrados e nos ensinam a ver quais são as nossas estratégias de pensamento e comportamento. Observando esses padrões, temos o poder de os suspender e de nos entregarmos ao sentimento que está oculto por bloqueios vários (medo, vergonha, sentimento de insuficiência, raiva, frustração, etc.).


Quando o fazemos sem esforço, temos a habilidade de morrer na postura do cadáver. Esse vazio é o que sobra quando o ego esta ausente. Quando não temos visões, ideias, concepções, pensamentos, e o mundo é visto sem filtros, modificações, interpretações, objectivos, e qualificações. Noutras palavras, quando permitimos que as nossas concepções sobre o mundo passem, experimentamos o mundo tal como ele se apresenta. Nesse espaço, a postura do morto não tem início nem fim e a nossa discriminação sobre o tempo desfaz-se. Não há nada que tenha de ser feito. Não há sítio nenhum para onde tenhamos de ir. O pensamento suspende-se e chega a um entendimento dialético intuitivo, ao invés de um entendimento racional e lógico.


Tal com em Śavāsana, o objetivo do yoga na vida quotidiana é viver activamente cada momento sem ser sugado pelos pensamentos ou pelo pensamento de não pensar. Deixar que tudo caia e que as nossas experiências, boas ou más, passem, sem nos apegarmos a elas, sem que nos identifiquemos com elas, sem que elas dominem a nossa vida.


Que possamos morrer, todos os dias, para renascer mais fortes e livres!

Namaste!

Maria João

163 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page