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Abhyāsa e Vairāgya

Quem se inicia nas práticas de yoga e meditação cedo constata a facilidade com que a nossa mente domina o consciente. A verdade é que, a vida frenética, quase caótica, dos dias de hoje reflete muito a agitação que podemos observar na mente quando paramos e nos centramos.



Essa agitação é a natureza da própria mente, dominada pela necessidade inconsciente de segurança e conforto. Só quando conseguimos utilizar a mente como um instrumento ao nosso serviço, ao invés de nos deixarmos andar em "piloto automático", ou seja, pouco presentes/conscientes das opções e das escolhas, deixando-nos arrastar pelos medos, vontades e desejos do ego (a parte da mente cujo propósito é a própria sobrevivência), é que sentiremos o verdadeiro potencial de uma mente disciplinada.


Patañjali, no aforismo I.12 do Yoga Sutra, faz referência às disciplinas fundamentais na metodologia yoga que ajudam o estudante/praticante a manter a sua mente focada:



Interpretação: a cessação da identificação com os vrttis (agitações da mente), consegue-se através da consistência/repetição e do desapego.



Abhyāsa: A prática consistente traz resultados profundos e duradouros;
Vairāgya: O desapego a esses resultados é o caminho, que implica a libertação da crença no perfeccionismo, da expectativa e do controlo (a constatação de que esses são desejos egóicos e não necessidades reais que alimentam a paz de alma).


Depois de Patañjali enumerar os tipos de instabilidade da consciência nos sūtras anteriores, agora apresenta-nos duas soluções para eliminarmos a identificação com essas instabilidades. Abhyāsa, a prática constante e Vairāgya, o desapego, são então os dois pilares onde assenta o Yoga de Patañjali, ou seja, são os dois pilares

para podermos ter um controle sobre os nossos pensamentos.


A proposta do Yoga não é de todo evitar os pensamentos ou tentar eliminá-los, mas sim perceber que sou mais do que os meus pensamentos. Os pensamentos são eu, mas Eu sou muito mais do que simples pensamentos, Eu sou aquele que observa os próprios pensamentos. Uma vez que temos uma percepção equivocada daquilo que somos, pois identificamo-nos com aquilo que pensamos, é necessário um constante esforço e disciplina para vermos a mente com uma certa distância e assim reconhecermos a natureza do Eu, que é livre de pensamentos. Isto é abhyāsa.


Sabendo que a função da mente é pensar e que isso nos é útil no dia-a-dia, o que há a fazer é saber utilizar a mente para nosso benefício e não deixar que seja a mente a utilizar-nos. Da mesma forma que eu conduzo um carro (o veículo), também deveria ser eu a conduzir a mente (um outro veículo à minha disposição).


O método para disciplinar a mente e ter as rédeas sobre ela é a prática constante e o desapego. Aliás, este método é também ensinado por Kṛṣṇa a Arjuna na Bhagavad Gītā, capítulo 6:

“Sem dúvida, ó Mahābāhu [Arjuna], a mente é agitada e difícil de ser controlada. Mas, Kaunteya [Arjuna], ela é disciplinada através da prática e do desapego. O Yoga é difícil de ser alcançado por aquele cuja mente não foi disciplinada. Esta é a minha visão. Mas pode ser alcançado por aquele cuja mente está sob o seu comando, por aquele que se esforça através dos meios adequados [abhyāsa e vairāgya].”

Se pensarmos numa bateria abhyāsa seria o pólo positivo e vairāgya o pólo negativo. Abhyāsa consiste em praticar de forma constante e responsável, em cultivar um estilo de vida de Yoga, em viver em Yoga. Em abhyāsa a ideia fundamental é não desistir. Vairāgya consiste em desapegar-se, desprender-se dos apegos, das aversões e das falsas identidades. Saber ver as coisas como elas são, com objectividade. Em vairāgya a ideia fundamental é saber soltar, deixar ir, deixar fluir.




Como praticar e fortalecer abhyāsa?

A disciplina e determinação de abhyāsa leva-nos na direcção certa, enquanto que vairāgya permite-nos continuar a viagem interna sem ficarmos agarrados aos prazeres e às dores que vamos experienciando ao longo do caminho. Mas, para que abhyāsa dê os seus frutos e funcione é necessário que seja feito por um longo tempo, de forma ininterrompida e com profunda e real dedicação. As mudanças na nossa vida não acontecem de um dia para o outro! É necessária uma grande disciplina por parte do praticante, uma grande preseverança e dedicação ao longo da vida para poder ir desmanchando as falsas noções que tem acerca de si mesmo.


Quando começamos a praticar e a estudar Yoga fazemo-lo com muita vontade e entusiasmo. Mas à medida que o tempo vai passando, se não mantivermos abhyāsa, essa vontade tende a murchar, especialmente quando nos deparamos com os obstáculos naturais que vão surgindo no caminho. Eventualmente, podemos até interromper a prática e o estudo por desânimo, por falta de motivação, por não vermos os resultados que esperávamos, por falta de confiança ou por outra coisa qualquer e, ao interrompermos, quebramos o processo de crescimento/evolução.


O praticante deve escolher um tempo sustentável para praticar e estudar, de forma a não desanimar a meio do caminho com a eventual exigência que colocou a si mesmo. Abhyāsa é fazer um pacto comigo mesmo, assumir o compromisso de dirigir os meus maiores esforços, de forma constante, para o conhecimento de mim mesmo.



Como praticar e fortalecer Vairāgya?

Vairāgya, o desapego, é a libertação de desejos, o que não significa sem desejos. Aliás, não é possível ao ser humano ser sem desejos, o desejo é um poder que o ser humano possui, aliás um poder que o distingue dos outros seres vivos. Graças a esse poder o ser humano pode, por exemplo, empreender a busca pelo auto-conhecimento. O problema não é desejar, o problema é ser governado pelos desejos!


A mente tem uma percepção subjectiva do mundo julgando que os objectos, experiências ou pessoas têm a capacidade de nos fazerem felizes ou infelizes. O Yoga não diz que é a presença ou ausência dos objectos que nos faz felizes mas sim que a felicidade que tanto buscamos é a nossa natureza real.


“Desapego não é abandonar o mundo mas sim abandonar a ilusão de que é através do mundo e de seus objectos que alcançaremos a felicidade” - Swami Paramarthananda

Desapego é olhar para os objectos tal como são, sem emprestar a minha subjectividade, sem projectar neles o poder de me fazer feliz ou infeliz. É compreender que todas estas coisas podem trazer alegria ou tristeza ou um misto dos dois e que esses estados são transitórios, começam e acabam. É perceber que em todo o ganho existe uma perda e que, depois de satisfazer um desejo, um novo desejo sempre surge. É entender que tudo aquilo que é observável é limitado no tempo e espaço e por isso aquilo que me pode proporcionar é também limitado. É saber que a minha segurança, a minha felicidade, a minha liberdade e o meu bem-estar na vida não dependem da presença ou ausência dos objectos. E isto é vivekaḥ, discernimento. E este discernimento conduz a vairāgya.



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